terça-feira, 14 de agosto de 2018

SOBREVIVI. CHEGUEI AOS 45 ANOS.



Ainda é cedo por isso não acendi velas, não parti o bolo e não se cantou parabéns. Enquanto eu tento me convencer de que cheguei aos 45 anos preferi transformar o primeiro momento do dia do meu aniversário em depuração, ou como você achar melhor um tempo drummondiano de ler e repetir: “E agora José, (Flavio), a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou,  e agora…?”

Com o passar dos anos confesso que meus valores mudaram. Posições que ambicionei, conquistas que valorizei, e pessoas que me impressionaram, perderam seus encantos. Alguns dos meus poucos idealismos murcharam. O desafio de ser campeão e almejar o sucesso pararam de me seduzir, percebi que o sucesso vem com uma etiqueta muito cara, já não possuo sonhos mirabolantes.

Esse processo de perder as ilusões iniciou-se no fim dos meus 42 anos em uma das minhas maiores crises existenciais. Foi duro, mais sobrevivi. Ali desisti de me pretender herói, passei a olhar a vida com os pés no chão. Ruíram certos sonhos de amizade que, ingenuamente, preservei. Passei anos e anos iludido com pessoas que rasgavam seda e, ao mesmo tempo, odiavam. Mal sabia que elas parasitavam em minhas frágeis conquistas. No dia em que alguém alardeou a minha derrocada, rápidos como ratos que abandonam o navio, procuraram jogar uma pá de cal. Não guardo mágoa. Só não posso deixar que novos aduladores se valham de minha credulidade.  Não há dor mais atroz que sentir-se abandonado no meio de bárbaros. E, notar, ao invés de mãos estendidas, unhas. Procuro amigos leais. Sei que eles existem. Oferecerei a mão a quem não trata companheirismo como um jogo de interesses. Preciso confessar que desembarco nos 45 anos mal resolvido nas relações. Ainda desespero com deserções. Agonizo com o descaso. Fico arrasado com a superficialidade do companheirismo. Admito culpa no processo: gostei de ser vitrine, aceitei adulação, deixei-me levar por admiradores duvidosos. Custei a perceber o assédio da empáfia e paguei caro. O eureka aconteceu depois de julgado, estapeado e demonizado por aqueles que me abraçavam. Daí em diante, sem querer, comecei a duvidar da própria sombra. Hoje, confesso que ainda não consigo lidar com as traições mesmo considerando normal que existam os Brutus, os Judas e os Joaquim Silvério dos Reis. Nasci no tempo dos relacionamentos líquidos e não consegui adaptar-me.

Desde então, caminho consciente de que muita fadiga não passa de vaidade. Hoje, aos 45 anos percebo que as poucas conquistas, e os parcos reconhecimentos que adquiri, não vieram da minha competência ou da minha disciplina. O pouco que sou, e alcancei, aconteceu devido ao cuidado da minha família e amigos verdadeiros (quase nenhum).

Precisei fazer alguns ajustes em minha espiritualidade. Redirecionei o olhar sobre a Bíblia. Aprendi sobre oração contemplativa. Redescobri o valor da meditação. Descobri o ofício que me enche de prazer, escrever. Mas sinto o texto nascer temeroso. Quando não encontro a companhia que o coração pede, contento-me em ler e rabiscar algum “textinho” do qual eu chamo carinhosamente as minhas elucubrações que coloco no papel.

No tempo de depuração fico cara a cara com a duríssima tarefa de reinventar-me, tento não desistir.

Hoje almejo dar risadas contagiantes, amar em momentos simples e perceber a natureza com sua generosidade. Quero voltar a brincar com as minhas filhas como criança.

Caminho na imperfeição. E, por isso, me sinto livre para me aceitar como obra inacabada. Sigo ainda o exemplo de Jesus que, em nome da vida, nunca hesitou em contradizer normas religiosas (Mt 12.2-7). Ele conversou com prostitutas, acolheu estrangeiros e fugiu de amoldar-se aos escrúpulos sociais (Mc 7.24-30). Para atender a uma mulher siro-fenícia, meu mestre não hesitou em voltar atrás até no que acabara de falar (Mc 7.24-30).

Álvaro de Campos foi duro em seu poema “A Tabacaria”. Para ele, o passado assusta como pesadelo para os que não acham a si próprios. Viver uma mentira é terrível, não saber escapar dessa mentira consiste no pior inferno.

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu…
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era
E não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho,
Já tinha envelhecido.

Não quero me perder. A estrada da vida encurta muito de repente. Comecei a arrancar as máscaras e não posso me dar ao luxo de parar agora.

Sigo devagar, abraçado à Graça, mais liberto de expectativas e com menos imperativos. Ancorado na certeza de que sou amado, me construo. Projeto gastar os próximos anos em aproximar-me de mim mesmo e de quem me ama.

Em Cristo,
Flavio Ferreira Constantino

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