“Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens” Mt 15.7-9Salvo alguns que não se dobraram a baal, somos todos uns canalhas. Eu, você, nós todos somos uma grande farsa, a maior de todas as farsas. E sabe por quê?
Organizamos nossas vidas de modo que tenhamos o mínimo dispêndio com a garantia do maior e melhor retorno. Fingimos que somos de outra estirpe, a dos filhos prediletos. Como filhos prediletos, queremos ser restituídos, queremos de volta o que é nosso. Rejeitamos todo mal, declaramos a nossa vitória, quebramos todas as correntes, exigimos nossa benção, sacudimos o inferno, não por sermos de Espírito libertário, muito menos altruístas; reagimos às ameaças negativas do
“no mundo tereis aflições”como bons invólucros do espírito do capitalismo, do que é nosso e ninguém tasca, sendo essa nossa ética gospelizante. Dos nossos guetos, claustros protegidos por hostes angélicas imaginárias, estabelecemo-nos nas estatísticas do emergente mercado com produtos alinhados com o exigente gosto do consumidor evangélico.
“Enfim uma linha de produtos com a nossa cara” declara a perua de Jesus. A cruz da vergonha, símbolo de assombro, pedestal do maldito, foi estampada com alegres cores e as vendas alavancaram. O peixinho antes solitário na rabeira dos carros agora endossa Filipenses 4.13, assim, não se dá satisfação para o significado de um ao passo que ninguém se atenta para o versículo anterior do outro. Podemos então astutamente declarar
“tudo posso naquele que me fortalece” depurando nossa ganância, afinando o mau senso de que temos o rei na barriga. Na cara dura agradecemos a Deus por nossos sonhos de consumo se realizarem, mesmo que uma pequena – ou grande dependendo da gula do fiel – barganha tenha sido requerida para a liberação das bênçãos. A campanha dos vinte e um dias de Daniel não costuma falhar com aqueles que são, digamos mais liberais nas contribuições. Jesus é nosso chapa, e Deus dá honra a quem tem honra é o ditado e pretexto.
Comer a carne e beber o sangue do Filho do Homem é demais para nosso paladar requintado, queremos os manjares de Nabucodonozor, basta obedecer o Cristo em outra instância – que não a de tomar a cruz diária – e comeremos do melhor desta terra. A promessa concreta que é
“Cristo em nós esperança da glória”, que permeia a história do Antigo e Novo Testamento, foi dissolvida, perdeu seu caráter e virou qualquer coisa, quem tiver a mais criativa imaginação que molde e determine a sua. Deus é Deus de promessa
“mer mão” vocifera em saltos histéricos o pastor que se gabou de comprar um jato pela
“pequena bagatela” de doze milhões de reais com o dinheiro sabe de quem?
O mandamento era ide e fazei discípulos, e o que fizemos? Cínico proselitismo. E sabe por quê? Porque somos uma farsa e já percebemos isso, nossa casa caiu. Então arregimentamos novas
“almas” para compor uma sofisticada logística do entretenimento em que o evangelho é servido via fast food, e a igreja para não ir a bancarrota por causa de sua insipidez importa fórmulas de crescimento, franquias norte-americanas compondo o pacote camisetas, canecas, bonés, manuais de auto-ajuda e sermões previamente arranjados. Somos uma farsa denunciada por nossos projetos megalomaníacos, mega-templos – com loja de conveniência e chafariz –, marcha para Jesus – ufanismo quantitativo –, assistência social – desencargo de consciência e escape do sentimento de culpa por sermos avarentos e egoístas –, descaso com missões – o que importa são as almas –, discipulado – catecismo de cacoetes, novas manias e antigas neuroses.
Criamos uma bem guardada resistência às histórias de sofrimento alheio quando o assunto é padecer pela causa do Cristo. A emoção corre solta durante o testemunho do missionário, e dura até no máximo a primeira oração da próxima reunião, quando o mundo volta a girar em torno do centro da terra, o umbigo das nossas panças bem forradas. Histórias como da pequena Nina de dois anos que vive com seus pais missionários embrenhada nas matas entre os ribeirinhos do amazonas, que está vomitando a dias com suspeita de algum parasita ter tomado sua barriga, é exemplo sabe pra que? Sabe qual a grande lição que guardamos das crianças ribeirinhas que adquirem doenças desconhecidas por comerem peixes contaminados por não terem outra opção? Que Deus é bondoso conosco e nos garante comida limpa e mesa farta – afinal o justo não mendiga o pão. Que esse é um forte indício para acolhermos nossos bens de consumo e agradecer a Deus por nossos filhos estarem a salvo dos perigos da pobreza. No caso de sermos acusados por nossa própria consciência – o juiz que Deus nos colocou no íntimo – de que algo nessa trama não se harmoniza com as palavras do Nazareno, somos confortados com saídas bem satisfatórias, tipo: Deus tem um propósito nisso, ou, foram predestinados para esse fim, ou ainda, não chegou o tempo de Deus na vida desses coitados.
O drama de Nina é um dentre tantos dramas contados por aí sobre os que pagam um alto preço por proclamar a rude cruz com todas as suas implicações, que deveria deixar-nos envergonhados por habitarmos em belas e espaçosas casas, por termos comida boa, roupa nova, plano de saúde, igreja com banco confortável, projetos, sonhos, canecas, bonés e camisas floridas estilo Rick Warren.
Deveríamos nos arrepender por comermos contra-filé e tomarmos Coca diet enquanto nas eiras do norte e nordeste comunidades inteiras comem bife de cacto não sem antes beber a água. Nossa cara deveria enrubescer por um missionário ter seu sustento – que é ínfimo, migalhas que caem da mesa de seus donos – ser desconsiderado como prioridade porque outros projetos institucionais são de maior importância e urgência. Por projetos institucionais entenda a construção do mega-templo, o aumento do salário de parlamentar do pastor, o gasto com propaganda midiática da denominação, a manutenção do conforto dominical do contribuinte-consumidor, importação de produtos da franquia, etc.
Julgamos ser assunto de primeira ordem a conservação do excedente dos nossos luxos e prazeres inúteis. Morreremos pela boca, já que com a boca distorcemos o discurso do Cristo para satisfazer nossos prazeres e deleites quando pedimos o que não se deve pedir. Pedimos mal e nos prostramos sobre a proposta do tentador que habita em nós. Queremos tudo e tudo nos será dado se prostrados adorarmos o lado enegrecido da nossa alma. Desconfiados de que amanhã o maná não cairá, estocamos hoje o da semana e quando percebemos que a sobra azedou fazemos caridade com a comida que já não presta. Não há em nosso discurso e prática, equivalente lingüístico nem espaço físico para o nós, tampouco para o nosso. É o meu milagre, a minha vitória, a minha benção, eu, meu, eu, meu, meu, minha, meu, minha... É só crer e não duvidar que hoje o meu milagre vai chegar.
Do conselho de Paulo
“Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros” só consideramos o que do outro eu também almejo, seus bens de consumo. Com a cara lavada somos gratos a Deus por nosso padrão de vida estar se elevando ao passo que indiretamente afirmamos que Deus faz acepção de pessoas, já que pra mim aqui no sudeste é prometido uma terra que mana leite e mel, enquanto no norte e nordeste outros comem cacto não sem antes beber a água.
Somos a maior farsa de todas, pois, corrompemos a maior história de todas. Por conveniência dizemos coisas que o Cristo não disse e omitimos outras que ele disse. Caso nossa estabilidade e tranqüilidade – que com muito custo conquistamos domingo a pós domingo, mensagem após mensagem, louvor após louvor, dízimo após dízimo – seja de alguma forma ameaçada sacamos logo de uma fala de Jesus e entoamos um mântra para amarrar todo mal. Assim proclamamos, por uma questão muito mais de fazer novos prosélitos e mostrar que detemos o monopólio da verdade do que propriamente amor ao outro, um Jesus que nunca conhecemos.
Diógenes circula com uma lanterna no meio dos crentes em pleno meio dia procurando algum sábio sem que o possa achar.
Os sábios não estão entre nós, estão existencialmente no exílio, onde até as pedras estão clamando. Elias não fazia a menor idéia, mas sete mil ainda não tinham se dobrado, pois estes estavam fora do grande eixo, não possuíam nome nem imagem. Deus não esta no templo. Deus clama no deserto e o batista lhe empresta a voz.