terça-feira, 7 de setembro de 2010

É melhor morrer do que perder a vida


“Hoje nos encontramos numa fase nova na humanidade. Todos estamos regressando à Casa Comum, à Terra: os povos, as sociedades, as culturas e as religiões. Todos trocamos experiências e valores. Todos nos enriquecemos e nos completamos mutuamente. Vamos rir, chorar e aprender. Aprender especialmente como casar Céu e Terra, vale dizer, como combinar o cotidiano com o surpreendente, a imanência opaca dos dias com a transcendência radiosa do espírito, a vida na plena liberdade com a morte simbolizada como um unir-se com os ancestrais, a felicidade discreta nesse mundo com a grande promessa na eternidade. E, ao final, teremos descoberto mil razões para viver mais e melhor, todos juntos, como uma grande família, na mesma Aldeia Comum, generosa e bela, o planeta Terra.” (BOFF, Leonardo. Casamento entre o céu e a terra. Salamandra: Rio de Janeiro, 2001, p.9 ).

Iniciaremos uma reflexão sobre um fato da história brasileira que mescla aspectos religiosos e políticos. Contaremos com a ajuda de vários teóricos da modernidade, buscaremos compreender o fenômeno religioso e suas interfaces com as outras dimensões da nossa vida.

Frei Tito, 30 anos do martírio: “Quando secar o rio de minha infância, secará toda dor” (Tito de Alencar Lima). No dia 10 de agosto de 2004 completou-se trinta anos da trágica morte de Frei Tito de Alencar Lima, em L'Arbresle, no Sul da França. Em sua dor gravou-se o que de mais hediondo produziu o militarismo brasileiro e, nele, reflete-se a venerável indignação de quantos acreditam na política como expressão coletiva de princípios éticos. No sofrimento de Tito, tornado símbolo das vítimas de torturas elencadas no livro Brasil, Nunca Mais (Vozes), inscreve-se a esperança de quantos acreditam na política como mediação de utopias libertárias.


Preso em novembro de 1969, em São Paulo, acusado de oferecer infra-estrutura a Carlos Marighella, Tito é submetido à palmatória e choques elétricos, no DOPS, em companhia de seus confrades. Em fevereiro do ano seguinte, quando já se encontra em mãos da Justiça Militar, é retirado do Presídio Tiradentes e levado para a Operação Bandeirantes, mais tarde conhecida como DOI-CODI, na Rua Tutóia. Durante três dias, batem sua cabeça na parede, queimam sua pele com brasa de cigarros e dão-lhe choques por todo o corpo, em especial na boca, “para receber a hóstia”, gritam os algozes. Fernando Gabeira, preso ao lado, tudo acompanha. Querem que Tito denuncie quem o ajudou a conseguir o sítio de Ibiúna para o congresso da UNE, em 1968, e assine depoimento atestando que dominicanos participaram de assaltos a bancos. No limite de sua resistência, Tito corta, com a gilete que lhe emprestam para fazer a barba, a artéria interna do cotovelo esquerdo. É socorrido a tempo no hospital militar, no Cambuci. As incessantes torturas não abrem a boca do frade dominicano de 28 anos, mas lhe cindem a alma. Cumpre-se a profecia do capitão Albernaz, da Oban: se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de seu silêncio.

Em dezembro de 1970, incluído na lista de presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, seqüestrado pela VPR de Lamarca, Tito é banido do Brasil pelo governo Médici. De Santiago do Chile ruma para Paris, sem jamais recuperar sua harmonia interior. Nas ruas da capital francesa, ele vê o espectro de seus torturadores. Transferido para L'Arbresle, próximo a Lyon, em seu estreito quarto no convento construído por Le Corbusier, Tito estremece aos gritos do pai espancado no DOPS, geme aos berros da mãe dependurada no pau-de-arara, arrepia-se de pavor aos espasmos de seus irmãos eletrocutados, contorce-se em calafrios sob o fantasma do delegado Fleury. Sua mente naufraga em delírios. Tito não recupera, no exílio, a paz que lhe fora seqüestrada. No dia 10 de agosto de 1974, um estranho silêncio paira sob o céu azul do verão francês, envolvendo folhas, ventos, flores e pássaros. Nada se move. Entre o céu e a terra, sob a copa de um álamo, balança o corpo de Frei Tito, dependurado numa corda. O suicídio foi o seu gesto de protesto e de reencontro, do outro lado da vida, da unidade perdida. Deixara registrado nas páginas de sua Bíblia que é melhor morrer do que perder a vida.

De retorno ao Brasil, em março de 1983, os restos mortais de Frei Tito tiveram solene acolhida na catedral da Sé, em celebração presidida pelo cardeal D. Paulo Evaristo Arns. Repousam agora em Fortaleza. Não se apagou, todavia, a luz de seu exemplo. A criatividade artística captou o rastro de sangue que se faz caminho. O curta-metragem Frei Tito, dirigido por Marlene França, recebeu aplausos em festivais do exterior, conquistou em Cuba o prêmio de melhor curta-metragem, no Festival Latino-Americano de Cinema, e, no Brasil, o prêmio Margarida de Prata, da CNBB.

Premiada pelo Serviço Nacional de Teatro, a peça de Licínio Rios Neto, Não Seria o Arco do Triunfo um Monumento ao Pau de Arara? Em memória de Tito, foi proibida pela Censura Federal durante o regime militar, impedindo Ricardo Guilherme de montá-la para percorrer o país. Adélia Prado homenageou-o num comovente poema. Oriana Fallaci dedicou a ele o livro - Um Homem - em que narra a paixão dela por Panagoulis, líder da resistência à ditadura grega. O senador italiano Raniero La Valle escreveu, sobre Tito, Fora do Campo, editado no Brasil pela Civilização Brasileira. Clara de Góes encontrou em Tito a força de inspiração para um de seus livros de poesia. Frei Tito é venerado por muitas pessoas de fé, que recorrem à sua intercessão em busca de graças.

Recordá-lo é resgatar o sacrifício de todos que, no Brasil, lutaram pela restauração da ordem democrática. Ela ainda é frágil, porém promissora, considerando que a sociedade civil prossegue se organizando e mobilizando na conquista de cidadania e na consolidação da democracia.

Celebrar neste ano a memória de Frei Tito é homenagear o sacrifício de todos que, no Brasil, viveram na bem-aventurança da sede de justiça e da fome de liberdade. E não temeram dar a vida para que todos tivessem vida, e vida em plenitude (João 10.10).

“Artigo retirado da página do Correio da Cidadania”.

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